Na sua plantação de flores silvestres orgânicas ao sul de Edimburgo, na Escócia, Sally Gouldstone colhe ingredientes botânicos nativos como urtiga, mil-folhas e cenoura silvestre, para fabricar os produtos de uso pessoal “da semente para a pele” da sua marca Seilich.
Gouldstone é PhD em conservação da natureza e sabe que precisa deixar a maior parte da sua produção no campo, para que as abelhas e outros polinizadores também possam fazer uso dela. A parcela que ela colhe é transferida para um alambique de cobre tradicional, para produzir óleos essenciais com métodos de processamento a frio.
Mas Gouldstone não estava satisfeita em apenas dizer aos seus clientes que tudo o que ela produzia era “natural” e “sustentável“. Essas palavras parecem estar em toda parte – e, sem evidências para comprová-las, ela sentia que poderiam ser mal utilizadas.
A Seilich é a primeira empresa britânica certificada pela organização Wildlife Friendly Enterprise Network, o que significa que a marca cumpre com objetivos de conservação específicos para cada espécie.
O objetivo certificado de cada companhia é levemente diferente, dependendo das principais espécies existentes na sua região. No caso da Seilich, sua certificação exige que a marca proteja espécies nativas de flores silvestres para mamangabas, abelhas solitárias, abelhas melíferas, moscas-das-flores, borboletas, mariposas e besouros.
A Wildlife Friendly Enterprise Network ajuda a conservar mais de 13 milhões de hectares (130.000 km2) de habitat em todo o mundo, segundo Christine Lippai, diretora-executiva da organização, que não tem fins lucrativos. Ela afirma que a certificação é a melhor forma de eliminar o greenwashing (termo em inglês para o falso marketing verde) na indústria de produtos naturais de tratamento da pele, evitando coletar ingredientes de forma que poderia esgotar os ambientes selvagens.
“A natureza é frequentemente utilizada para vender produtos na indústria de bem-estar e tratamento da pele, mas, às vezes, as empresas estão simplesmente explorando a natureza para seu benefício comercial”, segundo Gouldstone.
“No caso de ingredientes naturais cultivados, esses sistemas podem prestar serviços positivos para o ecossistema, como proteger a biodiversidade, sequestrar carbono, filtrar a água etc. – mas, quando chega a hora da colheita, esses benefícios são completamente perdidos. O carbono armazenado, por exemplo, é liberado quando o solo é revolvido e o habitat da vida selvagem é destruído antes que as criaturas que dependem dele tenham a chance de completar seu ciclo de vida.”
“Mas, com alguns ajustes, esses sistemas podem fornecer benefícios de longo prazo”, afirma ela.
O natural contra o sintético
Nos supermercados e nos principais canais de varejo online, muito além das áreas floridas da Seilich, existe um número alarmante de mensagens ambíguas e afirmações conflitantes que aumentam a confusão dos consumidores.
Se você quiser fazer a sua parte pela biodiversidade e pelo clima, é melhor comprar produtos naturais – com credenciais que podem ou não ser questionáveis – ou sintéticos produzidos pelas fábricas? A resposta a essa pergunta não é tão simples como pode parecer.
As substâncias químicas que prejudicam a saúde humana ou o meio ambiente podem ser encontradas nos produtos domésticos de uso diário, que vão desde sprays de limpeza e embalagens de alimentos até os móveis e utensílios de cozinha. Algumas dessas substâncias acabam dentro do nosso corpo ou permanecem no solo, na água e no ar à nossa volta por décadas – às vezes, até por mais tempo.
Alguns ingredientes encontrados na natureza podem ter efeitos poderosos sobre o nosso corpo. Produtos botânicos como o óleo de melaleuca, eucalipto e alecrim podem criar reações alérgicas ou irritação da pele e as pessoas podem ter graus variados de sensibilidade. Por isso, os produtos naturais não são necessariamente livres de substâncias prejudiciais e os sintéticos nem sempre são o pior para nós.
Às vezes, pode ser difícil saber quais produtos são naturais e quais são sintéticos. Um único produto pode conter uma mistura de componentes sintéticos e naturais, enquanto algumas substâncias são processadas para imitar as de ocorrência natural.
A forma de extração e processamento de um produto define até onde ele é natural. Os ingredientes podem ser extraídos de plantas, minerais, recursos marinhos ou animais, ou derivados sinteticamente de combustíveis fósseis. E aí existe todo um espectro de processos de transformação.
O nosso instinto pode nos fazer pensar que os ingredientes de origem natural devem ser melhores para o meio ambiente que os sintéticos, fabricados em laboratório. Mas será realmente verdade?
A questão também é ética
As práticas de agricultura orgânica ou regenerativa empregadas para cultivar ingredientes naturais podem proteger a biodiversidade e melhorar a saúde do solo, mas, dependendo de como, quando e onde algo é colhido, elas poderão também aumentar as emissões de alguns gases do efeito estufa.
Os fabricantes de produtos sintéticos em laboratório muitas vezes argumentam que seus métodos não causam exaustão dos recursos do planeta e que são capazes de produzir substâncias em escala maior e comercialmente mais viável, sem as limitações dos escassos ingredientes naturais.
Em alguns casos, a extração de ingredientes naturais não é viável ou ética. Um exemplo é o uso de caranguejos-ferradura como fonte de lisado de amebócito de Limulus (um composto importante, usado para exames de sangue), que vem sendo criticado pelos ativistas – e está sendo desenvolvida uma alternativa quimicamente idêntica, mas de origem sintética.
Já o esqualano – um óleo natural encontrado no fígado dos tubarões – é usado para fabricar cosméticos e produtos de uso pessoal como desodorantes, protetores solares e produtos de tratamento da pele. Outro óleo de tubarão, chamado esqualeno, é usado como coadjuvante para aumentar a eficácia de algumas vacinas.
A extração desses dois ingredientes ameaça a população de tubarões. Alternativas foram extraídas do azeite de oliva, mas a disponibilidade e o preço da matéria-prima flutuam conforme as colheitas, que dependem das condições climáticas.
Mas agora existe outra solução. Cientistas de uma companhia de biotecnologia chamada Amyris, da Califórnia, nos Estados Unidos, desenvolveram equivalentes sintéticos em grau farmacêutico, feitos de cana-de-açúcar de fontes éticas, certificada pela organização BonSucro.
O esqualano é “o melhor umectante da natureza”, segundo Mike Rytokoski, presidente de acesso à tecnologia da Amyris, que já produz mais da metade do esqualano consumido em produtos de beleza em todo o mundo.
A produção de esqualano sintético com um processo de fermentação garante maior pureza, maior vida útil e preços mais estáveis, em comparação com a extração de tubarões ou oliveiras.
“Os últimos avanços da biotecnologia nos permitem atender à demanda crescente por ingredientes limpos e sustentáveis, sem esgotar os escassos recursos naturais, mas com a criação de ingredientes bioidênticos com química limpa“, afirma Rytokoski. Ele espera que a biotecnologia verde transforme a indústria da beleza ao longo da próxima década.
“O impulso mais poderoso para essa transição [para soluções de química mais verde] é o consumidor”, segundo ele. “Os consumidores hoje em dia estão procurando produtos fabricados com ingredientes que sejam mais seguros, mais sustentáveis e eticamente extraídos, sem prejudicar seu desempenho.“
Outro caso em questão é o sândalo indiano, cuja fragrância é usada em produtos de beleza. Cada árvore de sândalo leva 30 anos para atingir a maturidade. Só então, o seu óleo essencial pode ser colhido e a exploração excessiva coloca essa planta em risco de extinção.
A Amyris criou em laboratório uma molécula de sândalo bioidêntica e mais barata, a partir da cana-de-açúcar, que é disponível em enorme quantidade, utilizando tecnologia de fermentação.
Buscando fontes sustentáveis
A maioria das substâncias sintéticas é produzida em escala com combustíveis fósseis, utilizando processos com uso intensivo de energia e gerando emissões tóxicas e resíduos perigosos. A indústria química é o setor produtivo que consome mais energia no mundo, resultando em imensas emissões de gases do efeito estufa, que amplificam a crise climática.
Petroquímicos são empregados para fabricar de tudo, desde embalagens e roupas até detergentes e fertilizantes. O plástico também é feito com petroquímicos e 98% dos plásticos descartáveis são fabricados com combustíveis fósseis.
O químico verde Richard Blackburn produz uma série de cosméticos, produtos para os cabelos e para a pele para sua marca Dr. Craft, com um recurso inexplorado: restos de alimentos. Os produtos são criados por meio de um processo de extração livre de toxinas e com uso eficiente de energia.
No seu laboratório na Universidade de Leeds, na Inglaterra, Blackburn – que é professor de materiais sustentáveis – cria produtos de higiene feitos de tangerina, utilizando a casca seca da fruta preferida dos chineses; produtos de tratamento corporal feitos com extratos de casca de uvas; ou tinturas de cabelo feitas com cascas de cassis – resíduos do fabricante britânico de bebidas Ribena.
Mas Blackburn explica que natural não é necessariamente melhor: “dedicar grandes extensões de terra para cultivar produtos para a fabricação de cosméticos é uma ideia terrível – nós deveríamos estar alimentando o mundo em primeiro lugar. Mas, enquanto produzimos comida, existem grandes recursos. A questão é buscar fontes sustentáveis e processos químicos interessantes que demonstrem, de forma confiável, uma atividade que possa ser usada em um material.”
Blackburn ressalta que muitas pessoas podem ficar confusas com os termos químicos, mas não deveriam se preocupar com isso. “A natureza faz química o tempo todo. Em vez de se assustarem com a química, as pessoas deveriam se assustar com as questões do ciclo de vida como um todo.”
No caso das tangerinas, por exemplo, 10 milhões de toneladas de cascas são incineradas por ano. Os processos empregados por Blackburn tornam a casca residual biodegradável, e todos ganham com isso.
Toda formulação representa um equilíbrio entre preço, eficácia, estética, desempenho e ética. Nessa balança, o meio ambiente costuma sair perdendo.
“Se o seu ingrediente inovador tiver um ótimo histórico de sustentabilidade, não deixe que o resto do produto seja o mesmo entulho que estamos utilizando desde sempre”, explica Blackburn, que projeta toda a sua linha de produtos com essa questão em mente.
O controle de qualidade também é uma prioridade em termos de segurança. A equipe de Craft examina todas as extrações muito detalhadamente, utilizando análises químicas de primeira linha.
“Quando extraímos um ingrediente da casca da tangerina, por exemplo, nós sabemos o quanto conseguimos dele no extrato, mas não queremos, ao mesmo tempo, concentrar inadvertidamente outra substância de ocorrência natural que possa causar problemas“, afirma Blackburn.
“Por isso, nós testamos para ter certeza de que não estamos incluindo nada que não queremos. Estamos combinando conhecimentos e instalações de análises clínicas de alto nível com princípios de sustentabilidade em um laboratório de cosméticos”, explica ele.
A busca do equilíbrio e impactos positivos
Ao eliminar os resíduos, encontrar soluções regenerativas e desenvolver alternativas sustentáveis, pioneiros como Gouldstone, Rytokoski e Blackburn estão liderando o caminho rumo a uma economia mais circular, baseada em ingredientes químicos que sejam bons para nós e para o meio ambiente.
De volta à Escócia, Gouldstone explica que, por décadas, a narrativa de consumo concentrou-se nos impactos humanos negativos. Ela insiste que podemos ter impactos positivos e regenerativos.
“A Seilich mostra que isso é possível“, segundo ela. “Como as plantas que cultivamos são nativas, elas crescem facilmente. Seu cultivo realmente usa poucos insumos e pode ser totalmente aplicado em escala.”
Gouldstone acrescenta que o debate entre ingredientes naturais e sintéticos depende, em última análise, da descoberta do equilíbrio entre a saúde humana e a saúde do meio ambiente.
“Elas não são a mesma coisa. O que é melhor para nós nem sempre é o melhor para o planeta. Precisamos começar a pensar sobre as pegadas ambientais de cada ingrediente em nível mais profundo”, explica ele.