Ao pensarmos nas mudanças climáticas e suas consequências, é comum que venham em mente coisas como o derretimento das geleiras, aumento do nível dos mares, grandes incêndios, entre outras. Estes efeitos não são ameaças apenas à forma como vivemos em nosso planeta, mas também a como fazemos ciência, já que as observações astronômicas e os instrumentos usados para isso ficam sujeitos aos perigos de fenômenos físicos, distorções nas observações, etc.
Hoje, temos observatórios astronômicos extremamente poderosos à disposição, como o Very Large Telescope, no Chile, e o European Southern Observatory (ESO), capazes de fornecer capacidades de observação impressionantes. Tudo isso só foi possível graças a anos de trabalho, que resultaram em grandes avanços na tecnologia e na engenharia — e, mais ainda, se pensarmos nos resultados que os telescópios com espelhos segmentados podem trazer, junto do aprimoramento da óptica adaptativa.
Contudo, não basta ter excelentes recursos para a construção de observatórios em locais privilegiados e tecnologias para observar objetos distantes se, cada vez mais, houver fenômenos climáticos extremos que colocam tudo isso em risco, sendo que muitos deles vêm ficando cada vez mais intensos — basta lembrar, por exemplo, do aumento excessivo das temperaturas, que pode alterar a umidade e causar turbulências atmosféricas. Além disso, ainda existe a ameaça do poder destrutivo de grandes incêndios e furacões.
Por que as mudanças climáticas afetam a observação astronômica?
Você já deve ter percebido que os observatórios são construídos em locais remotos, com as instalações localizadas em grandes altitudes e afastadas das cidades. Um dos motivos por trás disso é livrá-los da poluição luminosa, que pode interferir bastante nas observações astronômicas com os telescópios ópticos — uma forma de perceber isso é tentar observar o céu em um grande centro urbano, que deixa evidente como a iluminação das cidades é capaz de ofuscar a luz necessária para as observações.
Embora o excesso desta luz não seja tão prejudicial para os radiotelescópios, eles também ficam sujeitos à interferência causada pelos sinais da internet Wi-Fi, dos smartphones, de satélites GPS e até mesmo de aviões e carros. Por isso, os observatórios com estes também são construídos em locais remotos como uma forma de evitar a interferência destas fontes extras de ondas, que são capazes de dificultar a observação das ondas de rádio.
Além destes fatores, a turbulência atmosférica é outro item que merece bastante atenção. Quando observamos alguma estrela a olho nu, ela parece piscar por causa da turbulência. No caso dos objetos estudados pelos astrônomos, a luz deles precisa atravessar as várias camadas da atmosfera da Terra até chegar às lentes dos telescópios, e isso, junto da umidade do ar, pode causar distorções nas imagens obtidas — e, claro, ainda há a luz ultravioleta e infravermelha que acaba absorvida pela atmosfera terrestre. Por isso, o melhor mesmo para evitar estes efeitos é construir os observatórios em lugares altos e afastados, para reduzir o efeito da turbulência.
O problema é que as temperaturas do nosso planeta estão aumentando. De acordo com informações reveladas em uma análise feita pela NASA, 2020 foi o ano mais quente já registrado desde o início das medições, com uma diferença mínima em relação a 2016 — seguindo a tendência do aquecimento global, a temperatura mundial média foi 1,02 ºC mais quente que a temperatura de base do intervalo do ano de 1951 a 1980. Com o aumento das temperaturas e o impacto climático que ocorre, a performance das observações astronômicas também é afetada.
Um exemplo prático — e preocupante
Para entender melhor como isso acontece, considere o Very Large Telescope (VLT), que fica no deserto do Atacama, no Chile. As instalações do VLT contam com quatro telescópios em um só lugar, cada um com um espelho primário de 8,2 m, o que lhe rende facilmente o título de um dos telescópios mais poderosos do mundo, equipado com instrumentos de grande capacidade. Assim, no ano passado, pesquisadores liderados por Faustine Cantalloube, do Max Planck Institute for Astronomy, na Alemanha, analisaram como o VLT seria impactado pelas mudanças climáticas.
Para começar, o observatório é bastante sensível à temperatura. Os espelhos principais dele ficam abrigados no interior de grandes domos, cuja temperatura interior é controlada digitalmente. A temperatura do sistema de controle do VLT não pode passar de 16 ºC, mas, com o aquecimento global, já houve registros de calor acima do que o sistema de controle de temperatura pode suportar. Com a diferença de temperatura entre o espelho primário e o ambiente, ocorre turbulência no interior do domo, que é prejudicial à qualidade das imagens obtidas.
Outro efeito envolve a óptica adaptativa, que é profundamente influenciada pela turbulência na superfície. Como os quatro telescópios do VLT são bastante sensíveis, se essa turbulência aumentar, a qualidade das imagens também será prejudicada — isso não aconteceu ainda, mas com o aquecimento do planeta, é esperado também que a turbulência da superfície aumente. Se isso acontecer, pode ser necessário no futuro criar outro sistema para a óptica adaptativa, para que continue funcionando mesmo com mais turbulência na superfície.
Além disso, o clima mais quente também acaba aumentando os níveis de umidade, o que representa outro problema para os astrônomos: o vapor da água é capaz de bloquear a radiação infravermelha e de micro-ondas, algo prejudicial às observações feitas pelo Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (ALMA), também no Chile. Por enquanto, tal aumento da umidade ainda não foi observado, mas os modelos atuais não conseguem prever como essa tendência vai se comportar daqui em diante em relação aos instrumentos astronômicos.
Por fim, vale lembrar as ameaças meteorológicas que oferecem riscos consideráveis à integridade dos instrumentos. Durante o ano passado, a Califórnia foi duramente atingida por incêndios, e as chamas chegaram perigosamente perto de prédios de observatórios e alguns telescópios, mas foram controladas pelos bombeiros antes de alcançá-los. Elas causaram danos em casas por perto e destruíram construções abandonadas — e, mesmo com o controle do fogo, os telescópios da região ficaram com partículas de cinzas em seus espelhos: “nós tivemos sorte”, disse Claire Max, diretora da University of California Observatories, ressaltando que a região costuma passar por ciclos de seca e fogo.
O que esperar do futuro
Não precisamos nos restringir ao nosso próprio planeta para estudar as consequências que mudanças climáticas extremas são capazes de causar: basta analisar Vênus, o planeta considerado irmão da Terra. Esse nosso vizinho tem altíssima temperatura na superfície, que chega aos 450 °C. O calor se soma a uma atmosfera sufocante dominada por dióxido de carbono, que chega a ser quase 100 vezes mais densa do que a que temos na Terra.
Mesmo com características nada hospitaleiras hoje, as condições não foram assim sempre por lá: um modelo climático recente propõe que, um dia, Vênus teve temperaturas de superfície similares àquelas que ocorrem na Terra atualmente, com direito a oceanos, chuva e até neve. Tudo isso mudou há menos de um bilhão de anos, que foi quando o clima venusiano sofreu uma alteração drástica como consequência de um efeito estufa bastante intenso. Embora dificilmente a atividade humana seja capaz de levar a Terra a este ponto, temos um exemplo bastante próximo para servir de alerta sobre o que pode acontecer.
Com o ritmo das mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global, o futuro do nosso planeta está longe de ser tranquilo — um estudo recente feito por pesquisadores da Austrália, Estados Unido e México aponta que estaremos sujeitos a crises de distúrbios climáticos, redução da biodiversidade, excesso de consumo humano e aumento excessivo da população. Além disso, os observatórios vão ficar cada vez mais expostos a ameaças físicas, porque com a mudança do clima, os desastres naturais devem ficar mais fortes e frequentes até 2050.
Por isso, os pesquisadores terminam o estudo solicitando ações do resto da comunidade astronômica, que podem liderar iniciativas concretas e sustentáveis contra a crise do clima: “enquanto astrônomos, somos privilegiados por trabalhar em uma área tão fascinante, estudando objetos além da Terra pelo único propósito de aumentar o conhecimento da humanidade”, escrevem. “Para isso, uma grande mudança cultural é necessária, e é essencial que a astronomia use sua perspectiva única para ressaltar este fato: não temos um planeta B”.