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Aprendizado

O lado bom dos pesadelos

Nicole Rizzutti Lemos

Publicado

em

Tempo de Leitura: 7 minutos

No auge da pandemia de covid-19, um fenômeno estranho aconteceu — as pessoas começaram a ter sonhos esquisitos.

O efeito parece ter sido mais pronunciado naqueles que foram particularmente afetados pelo novo coronavírus e em países com medidas rígidas de lockdown.

As preocupações em relação ao confinamento, entes queridos e saúde pessoal foram repentinamente misturadas com outros pensamentos mundanos, fazendo com que alguns indivíduos acordassem confusos.

Para as pessoas na linha de frente, os sonhos se tornaram pesadelos.

Dos 114 médicos e 414 enfermeiros da cidade chinesa de Wuhan que participaram de um estudo publicado em janeiro de 2021, mais de um quarto afirmou ter pesadelos frequentes.

Os relatos de pesadelos entre a população em geral também aumentaram durante os lockdowns nacionais, sobretudo por parte de jovens, mulheres e pessoas que sofrem de ansiedade ou depressão.

Mas, de acordo com especialistas em trauma, o aumento dos pesadelos não foi nenhuma surpresa.

Para aqueles que estão na linha de frente do combate à covid-19, como os médicos e enfermeiros em Wuhan, 2020 foi um período de “estresse crônico“, diz Rachelle Ho, estudante de doutorado na Universidade McMaster, no Canadá.

Longos períodos de estresse que duram meses ou anos e afetam populações inteiras são bastante incomuns — comparáveis ​​apenas a guerras na história recente, acrescenta Ho.

Mas sabemos que o estresse crônico tem um efeito significativo em nossa função cognitiva. Pessoas que vivem sob pressão regular têm mais chance de ter pesadelos.

Um estudo com crianças em idade escolar entre 10 e 12 anos na Faixa de Gaza mostrou que mais da metade tinha pesadelos frequentes e, em média, em mais de quatro noites por semana.

As crianças são particularmente suscetíveis, diz Ho, porque seus cérebros ainda estão em desenvolvimento.

Embora os pesadelos estejam fortemente ligados a uma série de problemas de saúde mental, alguns sonhos vívidos nos ajudam a processar as emoções do dia anterior, explica Joanne Davis, psicóloga clínica da Universidade de Tulsa, nos EUA.

Entender por que certos sonhos se tornam pesadelos está ajudando a tratar pessoas que passaram por traumas.

Como os pesadelos nos protegem na vida real

É mais provável que lembremos dos sonhos que temos pouco antes de acordar ou quando pegamos no sono

Psicólogos como Davis estão começando a desvendar as relações entre nossos sonhos, distúrbios psicológicos e sua importância em nos manter emocionalmente estáveis ​​quando estamos saudáveis.

Enquanto dormimos, organizamos e arquivamos nossas memórias do dia anterior e tiramos um pouco o pó das memórias mais antigas e as reorganizamos.

Acredita-se que isso aconteça durante o sono, mas é no estágio de Movimento Rápido dos Olhos (REM, na sigla em inglês) — logo antes de acordar ou ao pegar no sono — que armazenamos nossas memórias mais emotivas.

Essas memórias carregadas de emoção se tornam então o tema de nossos sonhos.

Um sonho ruim pode ajudar as pessoas na vida real. A hipótese “dormir para esquecer, dormir para lembrar” sugere que o sono REM fortalece as memórias emocionais, armazenando-as com segurança, e também ajuda a atenuar nossas reações emocionais subsequentes a esses eventos.

Por exemplo, se seu chefe gritar com você e mais tarde naquela noite você sonhar com isso, da próxima vez que encontrar seu chefe, vai se sentir menos emotivo em relação àquele episódio.

É uma ideia intrigante que nossos sonhos nos preparem para controlar nossas emoções — mas quais são as evidências disso?

Quando nossos cérebros estão no estágio REM do sono, tanto o hipocampo quanto a amígdala estão altamente ativos.

O primeiro é a parte do nosso cérebro que ordena e armazena as memórias, e a segunda é a região que nos ajuda a processar as emoções.

Isso levou os pesquisadores a sugerir que sonhos vívidos, emotivos e memoráveis ​​durante o estágio REM são as manifestações de nossos cérebros armazenando memórias e “retirando a etiqueta emocional ou rasgando o recibo“, diz Ho.

A analogia de tirar a etiqueta emocional é amplamente usada na psicologia do sono.

Depois de um sonho ruim, a área do cérebro que nos prepara para o medo é mais eficiente, como se o sonho nos capacitasse para essa situação.

Os sonhos emotivos podem nos preparar melhor para o estresse do dia seguinte

Quanto mais tempo as pessoas sentiam medo durante seus sonhos, menos seus centros emocionais eram ativados quando viam imagens estressantes. (Uma coisa é estar melhor preparado para ver fotos angustiantes, e outra é estar preparado para o seu chefe gritar com você, no entanto.)

Nossa amígdala pode precisar desse período de processamento para reinicializar antes do dia seguinte. Talvez despejar a bagagem emocional do dia anterior durante a noite nos permita começar de um novo patamar pela manhã.

Estudos com trabalhadores estressados ​​mostram que nosso nível de cortisol, o hormônio que ajuda a regular nossa resposta ao estresse, é mais alto pela manhã, o que significa que somos mais capazes de reagir bem ao estresse cedo.

Enquanto o cortisol é produzido em outro lugar, nossa amígdala é usada para detectar situações estressantes.

Durante o REM, nosso cérebro produz ondas theta lentas e de baixa frequência no hipocampo, amígdala e neocórtex (também produzimos ondas theta quando estamos acordados, mas elas são particularmente características do sono REM).

Estudos em ratos, nos quais alguns roedores foram submetidos a tarefas estressantes, mostraram que os animais que tinham que fazer algo desagradável apresentavam mais períodos de REM e aumento das ondas theta durante o REM na noite seguinte de sono.

Daniela Popa, neurocientista do Instituto de Biologia da École Normale Supérieure, em Paris, é autora de um desses estudos indutores de estresse.

Ela demonstrou que as mesmas áreas cerebrais envolvidas no processamento de eventos emocionais nos sonhos seriam estimuladas novamente se os ratos fossem apresentados ao mesmo estressor — o que pode significar que o sono REM e a atividade theta estejam exclusivamente envolvidos no armazenamento e processamento de memórias ruins a longo prazo.

Popa destaca, no entanto, que é complicado procurar armazenamento de memória não emotiva em ratos, uma vez que é difícil saber o que eles estão pensando.

Como você trata os pesadelos?

Uma coisa é ter sonhos ruins estranhos e benéficos e outra totalmente diferente é ter pesadelos crônicos.

Com pesadelos, o processo parece estar emperrado“, diz Davis.

“Seu cérebro pode ter a intenção de processar esse evento emocional, mas ele fica preso porque você acorda no meio dele, e não vai até o fim.”

Uma vez que você tem pesadelos por um longo período de tempo, eles se tornam uma espécie de hábito“, afirma Davis, observando que alguns dos pacientes que ela atende viveram com pesadelos crônicos por décadas antes de procurar ajuda.

As terapias de exposição e reelaboração têm ajudado pessoas com pesadelo a dormir durante a noite

“Você se preocupa em ter um pesadelo, talvez evite dormir ou tente dormir o mais rápido possível — então se automedica para passar a noite.”

Como psicóloga clínica, Davis trata sobreviventes de traumas — como veteranos, crianças ou pessoas com doenças como transtorno bipolar — usando a terapia de exposição, relaxamento e reelaboração (ERRT, na sigla em inglês).

Na ERRT, o paciente escreve seu pesadelo exatamente como se lembra (exposição — que funciona particularmente bem com pessoas que têm ansiedade, diz ela) ou escreve seu pesadelo com um novo final (reelaboração).

Com a reelaboração, o paciente não necessariamente começa a incorporar o novo final ao seu sonho.

Em vez disso, “o que tende a acontecer é que ele simplesmente não tem mais o pesadelo ou ainda tem, mas não é mais tão poderoso ou confuso. Depois, diminui de frequência e vai embora”.

“É quase como se trabalhar o problema durante o dia resolvesse a necessidade de revivê-lo continuamente à noite “, diz ela.

Davis entende a importância de tratar os pesadelos não apenas como um sintoma de um problema mais amplo.

“Algumas décadas atrás, nosso campo considerava os pesadelos um sintoma de TEPT [transtorno do estresse pós-traumático]”, afirma.

“Mas se não for muito exagerado dizer, houve uma mudança de paradigma para pensar nos pesadelos como a marca registrada de muitos dos problemas. Se você resolver os pesadelos primeiro, poderá resolver as outras coisas que estão acontecendo [como depressão e dependência química].”

Davis diz que é importante olhar para os pesadelos como um indicador precoce de problemas futuros. Os sonhos emotivos às vezes ocorrem na noite após um evento significativo e, de vez em quando, cinco a sete dias depois.

Penny Lewis, professora de psicologia da Universidade de Cardiff, no País de Gales, e seus colegas sugerem que armazenemos as memórias cotidianas logo após elas acontecerem, mas há um “atraso no sonho” quando se trata de coisas de significado pessoal profundo.

Ensinar quem sofre de pesadelos crônicos a assumir o controle dos sonhos ruins por meio de sonhos lúcidos também parece reduzir sua frequência.

Esse tipo de tratamento é chamado de Terapia de Ensaio com Imagens (IRT, na sigla em inglês) e tem sido bem-sucedido em pequenos grupos, embora os pesquisadores neste estudo em particular não tenham certeza de como funciona.

Psicólogos como Davis não consideram mais os pesadelos apenas como um sintoma no tratamento do estresse pós-traumático

Em todos os casos, esses tratamentos se concentram em encontrar maneiras de garantir que os pacientes durmam a noite inteira sem acordar, dando a seus cérebros o descanso de que precisam para melhorar sua função cognitiva.

Embora nossa compreensão da causa e do tratamento dos pesadelos tenha melhorado consideravelmente nos últimos anos, os severos lockdowns desde o início da pandemia impuseram novos desafios para as pessoas em tratamento.

Uma pequena pesquisa realizada com pacientes franceses submetidos à IRT para tratar a causa de seus pesadelos recorrentes mostrou que a pandemia provocou uma recaída em dois terços deles.

Todos esses pacientes haviam reduzido com sucesso a ocorrência de seus pesadelos (em média de quase todas as noites para cerca de duas vezes por semana) usando a terapia.

Mas, em 2020, quatro anos depois de terem sido submetidos à terapia, a maioria relatou uma média de 19 pesadelos por mês.

Benjamin Putois, neurocientista da Universidade de Lyon, na França, escreveu em parceria com os pesquisadores Caroline Sierro e Wendy Leslie que durante a crise “o aumento da frequência dos pesadelos pode ser interpretado não apenas como uma reativação de memórias traumáticas, mas também como uma necessidade crescente de regulação emocional”.

Portanto, da próxima vez que você tiver uma noite de sono ruim, pense nisso como a maneira de seu cérebro regular suas emoções rasgando os recibos do estresse do dia anterior.

Davis diz que você só deve se preocupar se os pesadelos forem regulares ou se começarem a afetar sua saúde. Para a maioria das pessoas, os sonhos ruins podem ser algo bom.

Fonte: BBC Brasil

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